domingo, abril 13, 2008

CLUBE DA LEITURA 5

O PESADELO DE OPPENHEIMER

Se a radiação de mil sóis queimassem ao mesmo tempo no céu, isso seria como o esplendor do Senhor. Agora, eu me torno a Morte, o destruidor de mundos

Citação de J. Robert Oppenheimer a Bhagavad Gita

nota do autor

Segundo o site Wikipedia, J. Robert Oppenheimer foi um físico americano e professor da University of California. Ele também ficou como conhecido como o “pai da bomba atomica” por ter sido diretor do Projeto Manhattan. Foi neste programa do governo americano durante a Segunda Guerra Mundial as primeiras bombas atômicas foram desenvolvidas. Com o sucesso, foi promovido a chefe da recém – criada Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos. No entanto, em 1954, devido a opiniões “subversivas”, Oppenheimer teve seu passe de segurança revogado e saiu da vida pública. No mesmo ano, foi publicado o ensaio As portas da percepção, escrito pelo inglês Aldous Huxley. Nele, a autor discorre sobre suas experiências com mescalina. Huxley usou drogas até o fim de sua vida e escreveu diversos ensaios e livros de ficção sobre o tema, em que entorpecentes são utilizados tanto como instrumentos de libertação e auto – conhecimento quanto de controle e opressão.

antes

Enquanto enfrentava a depressão, Oppenheimer leu os trabalhos de Huxley. Normalmente, ele ficaria escutando compositores clássicos, mas sua capacidade de concentração parecia levada por ventanias fortes. Tentou leitura, para se acalmar. Nada funcionou, até se deparar com as pesquisas daquele escritor. Em sua educação, que o levou a enxergar o mundo de uma forma técnica e funcional, a idéia de outros planos, sem controle ou padrões, era inverossímil. Tanto na política quanto física, todos os efeitos são conseqüências das ações iniciais de objetos. No entanto, as circunstâncias atuais eram absurdas. As reações se tornaram muito mais violentas e inesperadas, além da capacidade dos cálculos. As possibilidades se espalhavam em cadeia, destruindo tudo a seu redor. Logo, a noção de que há outros elementos além da explicação da física quântica não parecia mais tão ridícula. O próximo passo seria encontrar Huxley.
Marcar uma reunião foi fácil. Seria no apartamento dele, onde poderia ver seu novo trabalho, que muito o intrigava. O que mais um homem poderia tirar de uma ciência que se propunha sem limites? Quais seriam as variantes de algo que propõe a além do infinito? Desde que se assumira como a Morte, o destruidor de mundos, a enorme nuvem em formato de cogumelo tomara não só as duas cidades, como corações e mentes pelo globo. Como Frankenstein, encarava uma criatura que fugira a seu controle.
- Você deve ser o Dr. J. – ele disse, sorrindo.
- Professor Oppenheimer. – respondeu.
- Entre. Sinta – se à vontade. É uma pena que não possa conhecer minha mulher. Ela está doente.
- Qual é o problema?
- Câncer.
- Meus pêsames.
- É triste por um lado, mas uma benção por outro. Ela poderá testemunhar todo um universo que nem os indutores mais exóticos ainda podem nos trazer.
- Trazer?
- À mente, Dr. Oppenheimer. A mente. A maior porta de todas, que esconde um salão infindável, com saletas dentro à exponencial n.
- Me desculpe, Sr. Huxley, mas, pelo o que sei, a morte não traz qualquer benefício. Só cadáveres.
- Como pode saber?
- Eu sei pelo o mesmo motivo que todos nós. Após a morte, a vida encontra o seu fim e o corpo começa o processo de decomposição.
- Não acredita em alma? Ou em algo que rege o corpo e as ações do indivíduo?
- Não há prova científica da alma humana. Quanto às ações, são respostas das ações do indivíduo, por mais estranhas que pareçam.
- É... Soube que revogaram seu passe de segurança. É impressionante! Qualquer tentativa de mostrar um novo lado de uma questão é sempre visto com desconfiança e ódio. O novo não interessa ao sistema humano. Qualquer coisa que ameace sua natureza cíclica deve ser exterminada, com a força de mil sóis. Citação apropriada, aliás, para a ocasião.
- Muito obrigado, Sr. Huxley. Pessoalmente, acho que a frase de Gita teve sua conotação deturpada. Eu apenas tentei dizer que o teste foi bem – sucedido, a bomba funcionou... Sem querer tomar mais o seu tempo, devo dizer o que traz aqui hoje. Eu li sobre suas experiências com um alucinógeno chamado mescalina.
- Ah, sei. Um colega meu mencionou uma droga muito interessante que estou considerando experimentar. Aparentemente, intensifica os efeitos da mescalina... Aliás, sou um grande admirador de seu trabalho.
- Obrigado. Admito que estou surpreso. Apesar de minhas opiniões, sempre fui visto como um fator – chave para o estabelecimento da política atual, apesar de minhas tentativas para...
- Um dos benefícios da bomba atômica foi mostrar ao público que o homem é capaz de realizações dignas de descrições bíblicas. O que vocês, do Projeto Manhattan, fizeram foi mais do que uma arma de destruição em massa, mas um objeto de criação. Medo e violência são elementos essenciais para o nascimento e sobrevivência de todas as criaturas e, por que não dizer, mundos. Todo ato de criação é também um ato de destruição, não concorda?
- Nós fizemos o que nos mandaram.
- Nunca se perguntou por quê?
- Era uma maneira de proteger a nação.
- Então, vocês eram apenas soldados, é isso?
- Me desculpe, Sr. Huxley, mas não vim até aqui para discutir sobre política mais uma vez. Vim aqui devido à curiosidade, não mais.
Huxley mostra dois pacotes.
- Branco ou preto?
- Branco.

durante

Uma hora se passa e começa seu sonho branco e pesadelo cinza. Uma voz, sussurra “... e pesadelo cinza...” e “Venha e veja..”. Oppenheimer encarava um vaso de flores que estava em frente à poltrona onde se sentara. Dentro do vaso, três flores, margaridas. Seus caules ficaram eretos e juntaram, dando às margaridas um aspecto semelhante a um dente- de- leão. As pétalas derreteram e se extenderam, como borracha, até as bordas do vaso e se liquifez, tornando – se uma perfeita e instável bolha d’ água. A bolha treme. O chão e tudo ao seu redor também. O terremoto balança seu crânio. Oppenheimer sente – se dentro de um liquidificador. Ele se sente enjoado. Cai no chão, vomita e a bolha explode. Seu coração dói e não consegue respirar.
Quando abre os olhos, ele vê uma fumaça densa, com cheiro nauseante e a qual queima sua pele. Ele não consegue parar se coçar. A nuvem se espalha lentamente, desrespeitando a passagem do tempo, pois transforma cada frações de segundo em um minuto. Ele não consegue abrir os olhos. Olha para baixo e um vê um grande cogumelo cinza, com uma pequena serpente enrolado ao redor da base. Ele pega o cogumelo e o come, junto com a serpente. Ele escuta o sibilar da cobra dentro dele. Ele tenta ignorar, mas o som aumenta. Ele grita.
Abre de novo os olhos. Tudo está branco, como em uma nevasca densa. Não há som, não há temperatura, nem cheiros. Só uma cor. Oppenheimer começa a enxergar uma forma que surge de dentro do branco. É um cavalo, com alguém montado nele. E ficou claro que era o Anjo da Morte. Aquele que parece um homem, andando por aí, anotando nomes, mas que decide quem libertar e quem condenar. O cavaleiro se dirige a ele. Os cabelos do seu braço se levantam, a cada gole, a cada trote e a cada golpe. Oppenheimer não consegue fugir, pois não começou ou fim nesta dimensão. Finalmente, o Anjo da Morte o alcança e eles se encaram. Oppenheimer não sente mais medo. É ele.
Oppenheimer sente náuseas mais uma vez. O cavaleiro segue seu rumo e grita:
- E, após o grande sonho branco, tudo o que vai sobrar são cinzas e sombras. Eu sou um homem, sou mulher, sou um alienígena, sou o sexo e a carência, sou a música e as luzes, sou o eterno e o datado, a ciência e a superstição, sou o produto bruto de todos os tempos de tempo nenhum... Eu queimei mil sóis e sou o Senhor. Quem é você?
Quando ele ia responder a pergunta, vomitou de novo e viu a explosão com os próprios olhos...

depois

...a bomba funcionou.
... Fiquei sóbrio. O mal está feito. Eu me iludi. Não sou um soldado. Sou um bastardo e vou pagar por todas essas coisas que eu fiz...
Oppenheimer, finalmente, conseguira sentir as imagens que rondavam sua mente. Não apenas visualizar, mas viver, comprovar na própria pele a eficácia de seu experimento.
E se viu como a Morte e que o mundo era branco, após os céus se incendiarem.

sexta-feira, abril 04, 2008

CLUBE DA LEITURA 4

VOMITANDO LITERATURA
Sai da livraria. Estou cansado. Hoje teve evento na loja. Isso para mim quer dizer ficar até meia-noite para só chegar em casa às duas. Não me incomodo em dormir pouco. Só não gosto da idéia de trabalhar até tarde.
Também não gosto dos babacas que vão. Um monte de filhinho de papai querendo ser passar por revolucionário apenas porque usa chinelo de dedo e parece que não tomam banho há três dias. Quanto tem evento, geral aparece e trazem os colegas. Já vi menos show de horrores em programa de domingo à tarde.
Hoje, foi pior. Este é o quinto buraco do inferno. O maluco mudo tentou dizer um poema: “Hã. Hã. Hã... Hã!”. Acho que ele tentou dizer “Batatinha quando nasce”. Quero esparramar sua cara no chão.
Não escrevo bem, entrei nessa para não perder um dinheiro que sei não vão me dar de volta. Digo o que me vêm à cabeça, neste momento de intoxicação terrena, inspiratória, mental e nasalmente.
Não entendo poema. Detesto vanguarda. Desculpa para fazer merda e dizer que é cheiroso. “Favelost”. Que porra é essa? Será que foi uma palavra que surgiu quando ele se engasgou com um sanduíche do Cervantes? Eu consigo ver o poetas de recital, orgulhosos de sua reputação e falta de noção, entre barofadas de um bom charuto jamaicano, gritando: “Gênio!” A culpa burguesa produziu revoluções sociais, fortaleceu religióes e ditou destinos políticos de Estados. Hoje, compra e vende produção artística. Produção artística. Arte, isso não existe mais. Roubaram o último exemplar na semana passada do Museu do Esquecimento.
Agora, entrei na onda. Agora, sou moderno. Agora, vou ser famoso. Agora, vou ser admirado. Agora, vou ser chupado. Agora, vai ter uma estudante de cinema quer fazer meu documentário. Agora, eu tou cheirado, bebendo pra caralho, todo o álcool que aparece na minha frente. Nasce o artista. Agora, me tira dessa porra de limbo e me leve para as estrelas.
Vejo sangue. É meu, mas não parece.
Como uma mulher. Obrigo ela a gritar “Favelost” durante a transa toda. Meto com mais força, só pra ele gritar com mais afinco: “Favelost”. Texto tem que ter sexo e palavrão. É isso que o público quer. As pessoas deviam fazer mais sexo para, assim, não ter que falar tanto dele.
Isso é um improviso ou desabafo? Isto é um texto ou um vômito? Isso é oportunismo ou criação em estado caótico? Isto é Fausto Fawcett ou Farrah Fawcett? Isto é motivo de orgulho ou vergonha? Isto é um questionamento ou encheção de lingüiça?
Tudo o que sei é queria ser um doce transexual da Transilvânia.
Não escrevo há tanto tempo. Essas coisas são mais prática que outra. A única maneira de manter em forma é se exercitando. Vejo meu texto como uma representação literária do meu estado físico: pequeno, com gorduras sobrando e semi – destruído internalmente. O que me sustenta e ao texto é o cabelo.
Alguns gritam: “Favelost é deus!” Discordo: “Que nada! Fave – Arquivo X é muito melhor!” E, para aqueles que se lembram, Fave- Twin Peaks é que deu origem a tudo isso.
Os dez reais melhores gastos na minha vida!

DANIEL RUSSELL RIBAS

CLUBE DA LEITURA 3

Este é um texto muito pessoal. É sobre uma ferida aberta.

UMA FÁBULA

Esta é a história de um fantasma que se apaixonou por uma garota com asas.
Ele vivia nas sombras, pois a luz o machucava, o fazia desaparecer. Devido a sua condição, fez amizade com a Solidão. No entanto, este relacionamento era conflituoso, pois ela exigia mais do que ele podia agüentar. O fantasma suportava o sofrimento porque sabia que, se deixasse a Solidão feliz, poderia garantir sua imortalidade. Ele não queria viver para sempre, mas até a hora certa. No fundo, ele queria desaparecer para sempre. Inclusive, tentou algumas vezes, mas sabia que não era seu direito. Os deuses exigiam dele um sacrifício e ele esperava, dia após dia, pelo chamado. Só eles o libertariam.
Ela adorava o sol, pois, durante o dia, podia voar livremente no céu e causar admiração dos que a viam na terra. Era disso que ela retirava suas forças para seguir voando, por mais exausta que ficasse após tanto tempo. A sensação de liberdade era maior quando uma platéia se formava. Algumas vezes, pessoas atiravam coisas nela. Ela se desviava quando podia, outras vezes, era atingida. Não entendia por que queriam lhe fazer mal e isso a entristecia. Mas, nestes momentos, ela olhava para a vastidão do horizonte e seguia em sua exploração do mundo, por cima, como a testemunha da beleza e caos de uma natureza partida ao meio. Ela olhava para baixo, sonhando com o que nunca seria seu.
Um dia, enquanto o sol se punha e as pessoas olhavam para o evento, a garota com asas aproveitou para procurar um local onde pudesse descansar até o amanhecer. Ela viu o terraço de um prédio de frente para o mar e foi em sua direção. À medida em que se aproximava, notou que já tinha alguém lá. No entanto, não era um ser como os que ela observava em seu espetáculo diário. Era diferente, o que despertou sua curiosidade insaciável. Ela desceu.
- Oi. – ela disse, sorrindo.
- Oi. – ele respondeu, educado.
- Quem é você?
- Eu sou um mecânico.
Ela riu.
- Eu sou uma artista.
- Eu sei, já vi suas apresentações na praia.
- Mesmo? E como eu não te vi?
- Desapareço com a luz. Ninguém me vê.
- Que triste.
- Não é. Gosto assim. Sou um fantasma, na verdade. Existem outros como eu, mas, enfim, nunca os vi.
- Eu tenho asas, mas não sou um anjo ou uma deusa. Também não sei se existem outras ou outros como eu.
- Não tem.
A partir daí, o fantasma e a garota com asas começaram a conversar e a se encontrar durante o pôr- do- sol. Gostavam da companhia um do outro e achavam ter encontrado algo precioso. Cada um a sua maneira, era indivíduos isolados e únicos, que estavam em uma esfera intermediária entre os humanos e as forças do Todo. De repente, a vida deles mudou. Sabiam que, em determinado momento do dia, se veriam e ficariam juntos, criando um universo particular. Por motivos além de suas compreensões, eram cúmplices num plano desconhecido. Pela primeira vez, experimentavam aquilo que os humanos chamavam de amor e conheciam o carinho. O temor que o fantasma sentia pela luz diminuiu e a garota com asas não precisava voar mais tão alto para se alimentar.
Muito tempo se passou desde seu primeiro encontro. O mundo mudou e os humanos ficaram mais cínicos. Os deuses imperfeitos se tornaram indiferentes. O sol sumiu e o público não mais prestigiava as apresentações da garota com asas como antes, o que a enfraquecia. A missão que o fantasma tanto aguardava não aparecia, deixando – o amargo e violento. A garota com asas achou que deveria se mudar, procurar um novo lugar para suas apresentações aéreas e, desse modo, recuperar sua energia vital. O fantasma, por sua vez, contaminado pela revolta, se tornou obcecado com a idéia de sacrifício, exigindo uma resposta dos deuses que o abandonaram.
A raiva do parceiro, aliado com seu desejo por um novo lar, manchou o espírito da garota com asas. O fantasma, por sua vez, entendeu a hostilidade de sua companheira como um sinal de que a Solidão a havia cooptado contra ele. A partir daí, os dois experimentaram, pela primeira vez em muito tempo, sentimentos humanos desagradáveis.
Ela queria voar alto de novo. Ele tentou encontrar os outros fantasmas para começar uma guerra. Enquanto isso, ela estendeu suas exibições na praia até mais tarde. Ele fez às pazes com a Solidão e um novo pacto, no qual ganharia mais sombras para se esconder e reunir forças em troca de sua fidelidade e um pouco de sua recém adquirida humanidade. Vieram dias em que um ia ao encontro do outro, mas não se viam. Os desencontros, que eram acidentais, se tornaram intencionais.
A gota d’água veio em um dia de festa. Era a mudança das estações e a garota com asas voou como parte das comemorações. Muitas pessoas vieram e aplaudiram toda aquela maestria, beleza e grandiosidade mostrada nos céus. A vibração a animou e lhe a energia que há tanto tempo sentia falta. Logo após, foi encontrar o fantasma no terraço. Ele estava concentrado, pensando em seus planos.
Ela, pela primeira vez, revelou seu desejo de se mudar, para um lugar onde os aplausos nunca terminassem e a luz fosse interminável. Ele não concordou, pois interferiria em suas estratégias atuais, além de sua missão, que, apesar de tudo, ainda acreditava que surgiria. Ela olhou com pesar para o amigo e lhe deu beijo. Quando tentou levantar vôo, o fantasma segurou suas asas. Enquanto se debatia, implorava para que ele a largasse, mas, como precisava de aliados e ainda não encontrara seus semelhantes, planejava levar a garota com asas para as sombras, como isca. Finalmente, ela se libertou e foi tão alto que sumiu na vastidão azul – escura. O fantasma olhava incrédulo, diante da fuga espetacular. Foi a última vez que se viram.
Ela continuou seu vôo e encontrou vários lugares. Tornou – se uma nômade, sempre em busca de um lugar onde o sol nunca se apagaria. O fantasma rompeu com a Solidão e se resignou em esperar seu chamado, esperando, que, um dia, teria sua liberdade e poderia se encontrar com a garota com asas, no sol.

CLUBE DA LEITURA 2

TUDO É TRIVIAL

Ela acorda. Não há ninguém ao seu lado. Não importa. Ruim é trabalhar de ressaca. Queria tomar um café bom. Detestava o que fazia. Até hoje, ela tenta descobrir onde que erra a mão. A ordem do dia precisa ser seguida com o mínimo de intervenções. Dentes, banho, roupas, café, ônibus, cubículo, ônibus, banho, roupas, dentes. O segredo do bom café fica para depois. Hum, será que a porta ficou aberta?...
Ela o observa. Ele está dormindo. Estará sonhando? A festa, a transa, ... ou nada, como se fosse um computador em repouso. Há muito ela o via. Um homem simpático, gentil, excelente colega. Essas coisas acontecem. Amanhã, talvez as coisas estejam diferentes. Melhor se nada mudar. “O que em Vegas, fica em Vegas”, repetem os personagens do filme. Preciso dormir. Nem é tão bom assim. Mais algo para ficar no esquecimento.
Eles conversam sobre o Oscar. Ela não viu, porque tinha que trabalhar cedo. Ele assistiu à cerimônia inteira. Perguntou como foi. Razoável. Quase nenhuma surpresa; ficou em segundo lugar no bolão com os amigos. Não gosta de apostar. Prefere manter sua invencibilidade para si. Não liga muito para isso. É divertido? Deveria...
Foi bom. Poderia ter sido constrangedor. Estão contentes. Se tivesse sido ruim, o clima ficaria ruim. Ter sido pode ser um problema também... Sentem, mas não conseguem verbalizar. Mas eles sabem. Esta não será uma grande história de amor. Caso aconteça, ou não, serão apenas mais uma etapa na vida do outro. Procuram entender tudo literalmente. Ninguém se machuca quando não quer. Eu gosto dela. Eu gosto dele. Não há motivo. A vida segue, apesar de nós. Aceitamos o fato.
Eles transam, como se fosse a segunda vez de suas vidas. Não cometem os erros da primeira, nem se entusiasmam. Querem de forma sincera dar prazer um ao outro. São colegas. Para que arruinar uma relação tão boa por conta de algo tão insignificante. O prazer jamais é pequeno. Os que nos leva até ele, sim. Eles concordam e são delicados. É saudável.
Eles se olham. Riem, Meio sem graça, meio bêbados. Se beijam com precaução. Sorriem. Gostaram. Se beijam de novo. Da mesma forma, tiram as roupas. As dobram e colocam no sofá e na cadeira. Sóbrios, talvez tivessem certeza. Têm uma desculpa.
Ela escuta o som. Está cansada, mas permanece em pé. Ansiosa. Mantém a segurança. Há quanto tempo não tem uma visita. O que ele vai achar?... Não espera elogios, mas também não quer o contrário. É sempre bom passar uma boa impressão. É como os relacionamentos se mantêm. Ela tem a mesma atitude com sua baia no trabalho.
Ele urina. O banheiro é apertado, mas bonito. Ela aperta a descarga. Lava as mãos, o rosto... Se olha no espelho. O que aconteceu?... Estou vivo, com saúde... Tudo deu certo. O resto... é o resto.
Nunca havia estado no apartamento dela. É bem arrumado. Gosto disso. Cada coisa no seu lugar. Não tenho empregada, então, sempre arrumo quando volto da academia. Queria ter essa dedicação. Domingo é meu dia. Levo a tarde toda.
O táxi demorou, né? É, mas veio, pelo menos. É... É... A gente se vê amanhã... Amanhã... Tchau... Posso usar o banheiro?... Claro... Se calam até ela abrir a porta... E a primeira porta à direita, no corredor.
Não costumam ir a festas durante a semana. Como foram parar lá? Bom, uma coisa levou à outra e, quando nos demos conta, lá a gente estava. Não vão ficar muito tempo. Vão comer os salgadinhos, porque não jantaram nada. Talvez beber um pouco. A música é agradável. Há quanto tempo não escutavam “Supersticion” ou “Ballroom Blitz”?... Talvez... deveria sair mais. É isso que as pessoas normalmente fazem. Não gosto de sair. Sou muito caseira. Tenho tudo o que preciso. Tomar um choppinho num bar é uma coisa, mas boate é outra. Além do mais, sempre têm briga nesses lugares; leu o jornal hoje?...
Daqui a pouco, acaba. O convite, apesar da inconveniência de ser numa terça – feira, mexeu com ela. Vão todos sair juntos. Queria tomar um banho antes. Se fizer isso, aí é que ela não vai mesmo... Foi. Por que não?
Ele passa pela baia dela. Oi. Oi. Sorrisos. Depois, devem conversar no bebedouro ou quando forem pegar mais café. Ela se sente à vontade com ele. Parece uma boa pessoa. De uma maneira formal, são íntimos. Trocam trivialidades um com outro sem culpa. É bom. Ninguém se quebra. Todos nós somos como porcelana, tão bonitos, tão fortes, mas frágeis ao mesmo tempo.
Para ela, a trivialidade é a filha bastarda da intimidade.

CLUBE DA LEITURA 1

Esse é um texto que escrevi para o Clube da Leitura, um evento sobre o qual ainda darei mais detalhes.

BERNADETTE E O DESCONHECIDO

A chuva já havia passado. As ruas estavam molhadas, mas a maior parte da água já evaporara ou tinha descido para os esgotos. Ao seu redor, poças enormes refletiam as luzes dos postes acima, numa imagem espelhada imperfeita, contaminada por impurezas de todo tipo. Para ela, aquele quadro no chão, com manchas granuladas e inquieto em seu discreto movimento, era mais real.
Bernadette bebia sozinha. O funcionário do bar trazia a quarta garrafa. Após retirar a vazia da “camisinha”, pôs a nova de forma desajeitada e saiu, rapidamente. Ela olhou para trás e o viu voltar para trás do balcão. Serviu mais um copo e bebeu. Em seguida, encheu de novo, tomou um pouco da cerveja, colocou o copo na mesa, procurou um cigarro na bolsa e, depois, o isqueiro, acendeu, deu trago e ficou assistindo a nuvem densa de fumaça subir no ar e sumir, se fundindo com o ambiente.
Há pouco tempo atrás, conheceu um estranho. Foi ver um apartamento à venda e ficou presa quando o temporal começou. Algumas horas se passaram e eles conversaram. De início hesitante, o homem, desculpe, o rapaz, ficou muito eloqüente à medida em que o papo se tornou mais pessoal. É engraçado isso?... Certas pessoas parecem tão tímidas, mas, é só falar do que você faz com sua vida, e elas se transformam em guias de auto – ajuda... Normalmente, vamos dizer, se Bernadette encarasse esta situação em uma boate, ela iria dançar e deixaria o cara sozinho ou se calaria.
Hoje, foi diferente. Ela não estava bêbada, não havia outras pessoas e a única música era a que os vizinhos tocavam. Talking Heads, Tears for Fears, ... os hits de 1987. Uma overdose digna de uma festa dos anos 80, se estas se levassem só um pouquinho a sério... Também a situação de ficar presa num lugar estranho com um desconhecido era esquisita para ela. Talvez tenha sido a combinação dos fatores que a deixaram tão abalada.
Ela era tão pessimista? Não. Acreditava ser uma realista. Com pouco esforço, ela tentava e, às vezes, conseguia vender sua idéia de que; como o corretor tinha dito, “O mundo não é um moinho, é uma merda mesmo.” Ao redor do mundo, as pessoas fazem o que querem e, em geral, fazem tudo errado. Era como uma daquelas fileiras de dominó, postas na vertical e com cada peça atrás da outra. A diferença era que o lado que atingia o outro dominó tinha bosta nele. Assim, quando caiam, sujam o próximo até terminar. Bernadette via o mundo desta maneira e não tinha problemas com isso.
Gostava de ver sua vida como vinte e cinco anos de prazer absoluto... Não irresponsável, mas conscientemente inconseqüentes. Quem era ele para me julgar? Tinha um namorado bem – sucedido, trabalhava, apesar de não estar empregada... Estava perseguindo seus sonhos. Estava na idade disso. Mesmo que aquele corretor não estivesse em posição de julgá – la, ela ainda não parava de pensar. Que ele não entendia nada, era verdade. Que aquele discurso “de perto, tudo é lindo”, já era batido e que ela já ouvira em um milhão de outras ocasiões, também. Tudo se perdia após um bom porre. Bernadette achava que seria a mesma coisa agora. Mesmo assim, estava demorando. Afinal, depois de quatro garrafas de cerveja, já deveria estar pensando em coisas divertidas, alguma piada ou uma situação engraçada.
Bernadette tinha combinado de passar na casa do namorado, mas desmarcou. Não se achava em condições. Queria um tempo para poder ficar deprimida à vontade, sem pressões ou perguntas idiotas. Já tinha tido sua dose pelo dia. “Por que estou pensando feito uma idiota?”, se perguntou.
Tomou mais um trago e a cerveja tinha esquentado. Morna. Virou o copo e se serviu. De repente, escuta de um dos prédios “Once in a lifetime” do... Talking Heads! Sorriu.
- Caralho, não de novo, porra! – comentou baixinho.
- Caralho, não de novo, porra! – gritou, sem se importar.
“A cerveja já tá fazendo efeito.” – pensou, enquanto ria, sozinha. Os outros, tantos os presentes no bar quanto os eventuais transeuntes, deveriam estar pensando “A garota é louca.”, mas e daí? O barato do prazer é o seu barato, não o dos outros. Um sábio já disse: nunca julgue um livro pela sua capa!...
E ela ria. Iria pedir mais uma garrafa e voltar para casa. Ninguém é de ferro.