sexta-feira, abril 04, 2008

CLUBE DA LEITURA 3

Este é um texto muito pessoal. É sobre uma ferida aberta.

UMA FÁBULA

Esta é a história de um fantasma que se apaixonou por uma garota com asas.
Ele vivia nas sombras, pois a luz o machucava, o fazia desaparecer. Devido a sua condição, fez amizade com a Solidão. No entanto, este relacionamento era conflituoso, pois ela exigia mais do que ele podia agüentar. O fantasma suportava o sofrimento porque sabia que, se deixasse a Solidão feliz, poderia garantir sua imortalidade. Ele não queria viver para sempre, mas até a hora certa. No fundo, ele queria desaparecer para sempre. Inclusive, tentou algumas vezes, mas sabia que não era seu direito. Os deuses exigiam dele um sacrifício e ele esperava, dia após dia, pelo chamado. Só eles o libertariam.
Ela adorava o sol, pois, durante o dia, podia voar livremente no céu e causar admiração dos que a viam na terra. Era disso que ela retirava suas forças para seguir voando, por mais exausta que ficasse após tanto tempo. A sensação de liberdade era maior quando uma platéia se formava. Algumas vezes, pessoas atiravam coisas nela. Ela se desviava quando podia, outras vezes, era atingida. Não entendia por que queriam lhe fazer mal e isso a entristecia. Mas, nestes momentos, ela olhava para a vastidão do horizonte e seguia em sua exploração do mundo, por cima, como a testemunha da beleza e caos de uma natureza partida ao meio. Ela olhava para baixo, sonhando com o que nunca seria seu.
Um dia, enquanto o sol se punha e as pessoas olhavam para o evento, a garota com asas aproveitou para procurar um local onde pudesse descansar até o amanhecer. Ela viu o terraço de um prédio de frente para o mar e foi em sua direção. À medida em que se aproximava, notou que já tinha alguém lá. No entanto, não era um ser como os que ela observava em seu espetáculo diário. Era diferente, o que despertou sua curiosidade insaciável. Ela desceu.
- Oi. – ela disse, sorrindo.
- Oi. – ele respondeu, educado.
- Quem é você?
- Eu sou um mecânico.
Ela riu.
- Eu sou uma artista.
- Eu sei, já vi suas apresentações na praia.
- Mesmo? E como eu não te vi?
- Desapareço com a luz. Ninguém me vê.
- Que triste.
- Não é. Gosto assim. Sou um fantasma, na verdade. Existem outros como eu, mas, enfim, nunca os vi.
- Eu tenho asas, mas não sou um anjo ou uma deusa. Também não sei se existem outras ou outros como eu.
- Não tem.
A partir daí, o fantasma e a garota com asas começaram a conversar e a se encontrar durante o pôr- do- sol. Gostavam da companhia um do outro e achavam ter encontrado algo precioso. Cada um a sua maneira, era indivíduos isolados e únicos, que estavam em uma esfera intermediária entre os humanos e as forças do Todo. De repente, a vida deles mudou. Sabiam que, em determinado momento do dia, se veriam e ficariam juntos, criando um universo particular. Por motivos além de suas compreensões, eram cúmplices num plano desconhecido. Pela primeira vez, experimentavam aquilo que os humanos chamavam de amor e conheciam o carinho. O temor que o fantasma sentia pela luz diminuiu e a garota com asas não precisava voar mais tão alto para se alimentar.
Muito tempo se passou desde seu primeiro encontro. O mundo mudou e os humanos ficaram mais cínicos. Os deuses imperfeitos se tornaram indiferentes. O sol sumiu e o público não mais prestigiava as apresentações da garota com asas como antes, o que a enfraquecia. A missão que o fantasma tanto aguardava não aparecia, deixando – o amargo e violento. A garota com asas achou que deveria se mudar, procurar um novo lugar para suas apresentações aéreas e, desse modo, recuperar sua energia vital. O fantasma, por sua vez, contaminado pela revolta, se tornou obcecado com a idéia de sacrifício, exigindo uma resposta dos deuses que o abandonaram.
A raiva do parceiro, aliado com seu desejo por um novo lar, manchou o espírito da garota com asas. O fantasma, por sua vez, entendeu a hostilidade de sua companheira como um sinal de que a Solidão a havia cooptado contra ele. A partir daí, os dois experimentaram, pela primeira vez em muito tempo, sentimentos humanos desagradáveis.
Ela queria voar alto de novo. Ele tentou encontrar os outros fantasmas para começar uma guerra. Enquanto isso, ela estendeu suas exibições na praia até mais tarde. Ele fez às pazes com a Solidão e um novo pacto, no qual ganharia mais sombras para se esconder e reunir forças em troca de sua fidelidade e um pouco de sua recém adquirida humanidade. Vieram dias em que um ia ao encontro do outro, mas não se viam. Os desencontros, que eram acidentais, se tornaram intencionais.
A gota d’água veio em um dia de festa. Era a mudança das estações e a garota com asas voou como parte das comemorações. Muitas pessoas vieram e aplaudiram toda aquela maestria, beleza e grandiosidade mostrada nos céus. A vibração a animou e lhe a energia que há tanto tempo sentia falta. Logo após, foi encontrar o fantasma no terraço. Ele estava concentrado, pensando em seus planos.
Ela, pela primeira vez, revelou seu desejo de se mudar, para um lugar onde os aplausos nunca terminassem e a luz fosse interminável. Ele não concordou, pois interferiria em suas estratégias atuais, além de sua missão, que, apesar de tudo, ainda acreditava que surgiria. Ela olhou com pesar para o amigo e lhe deu beijo. Quando tentou levantar vôo, o fantasma segurou suas asas. Enquanto se debatia, implorava para que ele a largasse, mas, como precisava de aliados e ainda não encontrara seus semelhantes, planejava levar a garota com asas para as sombras, como isca. Finalmente, ela se libertou e foi tão alto que sumiu na vastidão azul – escura. O fantasma olhava incrédulo, diante da fuga espetacular. Foi a última vez que se viram.
Ela continuou seu vôo e encontrou vários lugares. Tornou – se uma nômade, sempre em busca de um lugar onde o sol nunca se apagaria. O fantasma rompeu com a Solidão e se resignou em esperar seu chamado, esperando, que, um dia, teria sua liberdade e poderia se encontrar com a garota com asas, no sol.