quarta-feira, novembro 24, 2004

A CURA

Neste ano, tenho tido súbitos ataques de flashbacks. Cada vez mais, sua freqüencia e duração aumentam. Em qualquer hora, qualquer lugar, acontece. Não consigo evitar, sequer desejo. Para quê? Quando a realidade presente se mostra decepcionante, entristecedora, sem razão, doses homepáticas ajudam a aliviar a dor de não saber direito por que você levanta da cama todo dia para o mesmo dia. Pode soar exagerado, mas, por traduzir meu sentimento em relação ao mundo ou a mim mesmo, prefiro correr o risco de ser taxado de melodramático. Qual depressivo crônico não é? Ainda que com motivos... Eu me estou vendo, de volta ao Leme, onde morei por 7 anos. Minha adolescência toda passei lá. Cresci, aprendi, conheci a tristeza e a anestesia naquele apartamento apertado. Fodi minha coluna de tanto dormir no sofá da sala, enquanto meus pais monopolizam o único quarto não ocupado por caixas de mudança. Via TV pela madrugada toda, olhava através da janela para o prédio ao lado, na esperança de que alguém surgisse e algo, alguma coisa, me ensinasse o que era viver. Até apareceu um dia, mas era alguém tão ou mais problemático do que eu. Nunca mais a vi. O ar- condicionado ficava na sala, gelando de maneira gostosa o ambiente. Via seriados de todos os tipos na TV a cabo, noites e noites a dentro. Enquanto meus amigos descobriam os exageros, experimentando prazeres, eu assistia "The Fresh Prince of Bel- Air".
Agora, eu estou na sala principal. Está mudada, menor e num ângulo diferente. Apesar das aparências, é a sala, é o que sinto. As luzes acesas, está escuro lá fora, estou vendo TV. Eu devo estar com 15 ou 16 anos. Vejo TV, solitário, imaginando o que os outros estão fazendo e por que não posso participar. Sonho com os prazeres de moleques da minha idade que não tenho coragem de procurar. Eu olho para esse menino virginal e não consigo acreditar que ele existiu. Sento ao lado dele, tento falar com ele, mas está tão mergulhado em seu mundo imaginário de abusos que não me escuta. Quero dizer a ele que nada vai mudar. Ele vai conhecer a vida, tudo num período muito curto e intenso de tempo. Ele vai ser feliz um dia. E, quando achar que nada pode dar errado, perderá tudo. O menino de 15 anos, ao contrário do que imaginava, não sonha só com boates e ser amigo do pessoal "sinistro", os "playboys" que ele tanto inveja. Eu estou dentro do corpo do menino de 15 anos. Nós estamos num quarto aperto de um apartamentinho de luxo no Jardim Botânico. Vemos eu, num terceiro garoto. Ele tem seu próprio quarto, onde ele faz o que quer. Tem um baseado num cinzeiro perto do computador, embaixo da estante com uns poucos livros. Recentemente, ele começou a criar gosto pela leitura. Ele está deitado em sua cama pequena e confortável, com uma colcha leve e reconfortante com o corpo de uma bela mulher, linda e que o compreenderá. Ao lado da cama, há uma mesinha de metal, na qual em cima há uma garrafa de Bohemia gelada. Nós sentimos vontade de beber uma Bohemia. Mas, não podemos pegar a garrafa. Somos dois espíritos, unidos num mesmo ser espectral, em nossa visita. Como um xamã, anulamos o peso de nossos corpos, o meu real e o dele, imaginário, e tranportamo- nos num vôo a outro mundo, em busca de uma cura para mim. O menino de 15 anos não tinha cura, também a procura. Então, juntos, fomos a um nível de percepção completamente fora das realidades presente e passada. O terreno da ilusão em 3D: o quarto do Jardim Botânico e o terceiro garoto, como que inseridos num cenário de tela azul.
Nós obervamos de perto o jovem adolescente de classe média- alta, deitado, com uma cerveja a mão. Ele é outro solitário. Igualmente insatisfeito com sua situação. Igualmente deslocado. Nos separamos e nos tornamos dois espíritos, observando o pobre meino rico.
Fíco lá, com os dois. O cenário é melancólico, mas é melhor do que voltar. Não vou sair agora. Enquanto as mãos escrevem, o corpo se mantêm ocupado, a mente viaja. Como uma boa tragada. Finalmente, expiro a fumaça e o texto acaba. Ponto final e retorno.
Queria saber qual é o nome da música que toca na minha cabeça agora.
Espero que os garotos de 15 não descubram como eu o quão a vida pode ser cruel. Eu gosto deles.
Não posso evitar. Não há cura para esse mal.
Acabou.